25/07/2012

CONFLITOS

IORRAN SEBASTIÃO BASTOS


-E aí, pai, como foi o almoço com ela?
Foi a primeira coisa que perguntou quando ele entrou no carro para irem a um show de música que haveria naquele dia.  O cantor João Bosco, aquele mesmo que disse em uma de suas canções que “o amor quando acontece, a gente esquece tudo o que sofreu um dia”, ia ser homenageado em um  evento na cidade.

- Foi ótimo, filha e acho que você já vai ter uma madrasta e não demora muito.
- É mesmo?

A pergunta veio junto com aquele semblante preocupado-alegre, uma feição lutando para se sobrepor à outra para não deixar constrangimentos para o pai, quando viu a cara de só risos dele.

-Sabe, filha depois de alguns casamentos as coisas não são como a gente gostaria, aquela entrega imediata, típica da ousadia dos apaixonados. Ela mesma sabia um pouco das coisas do coração, afinal já não é mais uma menininha. Também tinha lá seus conflitos.

Mesmo assim ficou procurando uma explicação que conseguisse sintetizar aquele momento pelo qual passava. O coração não tem nenhuma compatibilidade com planejamentos, no entanto. Estava pensando meio ansioso, meio angustiado o que falaria para ela quando buzinasse à porta da casa. Sabia que ela ia perscrutar algo. Estava curiosa para compreender mais  aquela meia história que ele havia lhe contado no domingo anterior sobre a primeira namorada dele na pré-adolescência. Agora ele e ela se reencontraram depois de mais de trinta nos, sós novamente e com um horizonte cheio de possibilidades de viver o que não foi possível naquela ocasião. Num estalo, veio-lhe a explicação em forma de canção e foi assim que respondeu – cantando – logo que ela fez a pergunta:


“Ah, meu coração que não entende
O compasso do meu pensamento
O pensamento se protege
E o coração se entrega inteiro sem razão.
Se o pensamento foge dela
O coração a busca, aflito.
E o corpo todo sai tremendo
Massacrado e ferido do conflito.”
CONFLITO (Canção de Fagner)

10/07/2012

DUPLA NOVA NO PEDAÇO


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É sabido no meio dos bebedores compulsivos que as mais inesquecíveis amizades são feitas num boteco. Inesquecíveis, pois costumam ser as melhores e também as piores. Principalmente porque elas não costumam extrapolar os limites geográficos do estabelecimento, a não ser que seja para um encontro em outro bar com cerveja mais gelada, tira-gosto mais gostoso, música mais agradável, etc, etc, etc. Quanto ao “melhor e pior”, fique bem claro que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

Foi num desses ambientes, outrora muito mais freqüentados pelo Arcanjo para seus inolvidáveis porres que conheceu e ficou amigo do Iorran Sebastião Bastos, um músico da noite. Não, ele não é cego, nem compôs nenhuma música clássica. Qualquer semelhança do nome com o genial  Joahann Sebastian Bach deve ser atribuída ao apego desmesurado de sua mãe com os clássicos da música. O pai queria Lamartine, em homenagem a um  grande compositor brasileiro, mas se deu por satisfeito. Ambos eram devotos da boa música. Começou sua trajetória musical mais ou menos como os Engenheiros do Hawaii. Tinha uma banda com a turma da escola de engenharia, só que ao final do curso, todos os demais foram atacar de engenheiros como mandava o diploma e ele destoou da régua e do compasso. A harmonia dos números era muito fria para seu sensível apego a um acorde dissonante. Iorran toca muito bem vários instrumentos e, além disso, passeia por muitos estilos, exceto os da moda atual. Segundo sua teoria musical, a música sertaneja eletrônica e as baladas de axé, funk e demais batidões são uníssonas. Tocou uma vez tem-se a sensação de ter tocado todas. Mudam-se vez em quando as dancinhas que inventam para acompanhar. A amizade com o Arcanjo nasceu a partir de uns aplausos quase solitários deste para ele, depois de tirar no sax a canção As Rosas Não Falam, desprezada pela platéia alvoroçada dos fins de noite. Quase ninguém no bar prestava atenção. Os poucos que o faziam era com pedidos para ele mudar para música sertaneja que chamavam de universitária, seja lá o que possam achar o que isso signifique. A própria atmosfera cultural da universidade já não é mais a mesma de uns anos atrás, então o que diremos de música universitária?

Um papo filosófico musical recheado de nostalgia e uma cantoria alegre varou a noite e só foi terminar a pedido do dono do bar para eles gentilmente  pagarem a conta e irem embora (“pelamordedeus”, foi a expressão exata). Precisava fechar as portas.

01/07/2012

GLEICINEIDE, O CAFÉ E A MORTE


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Estava na cozinha vendo uma velha garrafa de café e comentei com a Gleicineide que uma das formas que a gente tem de se livrar de uma garrafa de café velha é esperar algum velório. As pessoas costumam levar café durante a madrugada e raramente há alguém que volta com a garrafa para casa. Cisma higiênica, superstição ou oportunidade de descarte para comprar outra. Consumismo também ensina macetes mais inusitados do que reciclagem. Foi o que já presenciei em alguns velórios. Nunca vi alguém levar café, leite ou chá e depois voltar coma garrafa para casa. Se bem que o meu cunhado do jeito que é pão duro... Se bem também que sendo pão duro, será que ele levaria alguma coisa? Cabeça ruim essa minha!

A Gleicineide já me interpelou dizendo que se depender dela sequer vai ver se tem café.
- Seu moço, eu nem entro naqueles quartinhos de velórios. Se o senhor quer saber mesmo, eu não tenho coragem nem de ir ao banheiro num cemitério. Da última vez eu perdi um primo e fiquei com vontade de fazer xixi mas não fui ao banheiro. Minha mãe até se ofereceu para ir comigo. Fiquei com a bexiga cheia a noite inteira. Cadê coragem?
- Mas medo de que, Gleicineide, você ainda acredita em fantasmas?
Seu moço eu tenho medo dos mortos e dos vivos mas dos mortos eu tenho mais, viu? Assim, não é a pessoa que volta para assombrar a gente, não! É o diabo que assume as feições daquela pessoa ali morta e volta pra gente.
- Mas o que um assombração dessas pode fazer, Gleicineide?
- Uai, no mínimo deixar a gente doida.
- Doida?
- Doida de tanto medo, seu moço. Sei lá, não vou, não tenho coragem de olhar pro defunto nem amarrada! Imagine  se eu vou ter coragem de tomar café?
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